Mario de Andrade

Carta de Mário de Andrade - 1945

 

“São Paulo, 15-II-45

 

Meu caro Scliar

Recebi sua carta faz poucos dias e você não pode imaginar o prazer que ela me causou. Realmente eu não podia imaginar que você se lembrasse de me escrever nessa vida intensa, tão prodigiosamente nova que você está vivendo. Poucos dias antes de receber sua carta, já aqui nos lembráramos publicamente de você, no Congresso dos escritores, quando enviando a nossa solidariedade aos soldados da FEB, especificamos em particular, o nome dos intelectuais nossos amigos que estão ai, como o Geraldo Vidigal e você.

Por aqui, para a sua vida de pintor, você não tem perdido nada. Não deixa sempre de haver exposições de pintura e de outras artes. Mas tudo no geral é fraco, morno, porque na verdade o nosso pensamento está noutra parte, está aí, nessa parte da terra onde se resolve o destino da humanidade. E de fato o que ainda tem alguma importância são as manifestações artísticas de solidariedade e aproximação humana. Como a exposição de artistas brasileiros na Inglaterra, que causou muita crítica. Está claro que nem sempre crítica bastante compreensiva do fenômeno de civilização que representamos. É uma coisa fatal: os europeus, fatigados de sua civilização, só pedem para as artes americanas um “exotismo”, uma cor local que afinal de contas não é tão exótica assim. Se esquecem que a nossa civilização é fundamentalmente europeia, e sonham com uma China ou uma África de quinze séculos atrás. D’aí causarmos sempre bastante desilusão com as nossas manifestações. Nunca me esqueço de uma crítica francesa a uma obra de Vila Lobos que usava como melodia principal uma modinha do Catulo Cearense, que do Ceará não tem nada, sempre viveu do Rio, e é muito bom malandro da Lapa. Mas o crítico sentia o perfume furioso da florestas-virgem, o canto rouco dos índios em celebrações místicas, o diabo. Esperemos que com as aproximações desta guerra, além de um melhor sentido da vida humana, surja também uma concepção mais humana e viril do que seja a atualidade do mundo.

Aliás, outra exposição que a mim me deixou muito preocupado foi a da pintura canadense realizada aqui e no Rio. Curiosíssima. Talvez mais curiosa que boa, e os nossos críticos não deixaram todos de salientar o caráter “decorativo” da maioria dos pintores canadenses. Mas nisto eu me pergunto se já não será, também uma incompreensão da nossa parte, chamar de “decorativo” uma tendência sensivelmente nacional de pintura, que se diferença profundamente da nossa. Na verdade não existe uma concepção única de pintura, e as nacionalidades e as civilizações apresentam “ideais” de pintura muito diferentes uns dos outros. Existe uma concepção europeia de pintura, que veio se desenvolvendo sempre a mesma, apesar de seus diferentes aspectos, desde o Renascimento a´te a Escola de Paris. Mas a pintura chinesa, a persa, a egípcia, a bizantina, são outras tantas concepções de pintura fundamentalmente diversas da europeia-cristã. Agora imagine que eu fosse xingar a pintura bizantina de “decorativa” só porque, se o pintor bizantino, se pertencesse à Escola de Paris, seria um decorativo! Não é possível adotar esse critério. Da mesma forma, se a pintura canadense usa voluntariamente e conscientemente elementos quena Escola de Paris são detestados por “decorativos”, eu não posso adotar o critério da Escola de Paris pra estudar esses canadenses e lhes compreender as tendências.

Desejaria que você visse essa exposição atordoante, se você não estivesse aí com ocasiões de ver coisas muito mais importantes para a sua cultura e para a sua experiência vital. Você me conta ter visto o Vaticano. Eu nunca vi e sempre sofri muito por essa falha enorme da minha cultura que é não ter viajado à Europa em tempo oportuno. Me guardo para ouvir suas conversas, na volta. Com o abraço mais afetuoso do seu amigo,

Mario de Andrade”