Moacyr Scliar

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RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM

 

“Sempre me orgulhei de ser primo do pintor gaúcho Carlos Scliar. Senti-me ainda mais orgulhoso ao ver a bela exposição de seus trabalhos mais recentes na Usina do Gasômetro. Mais do que esses trabalhos, contudo, comoveu-me uma tela que figura no acervo Gilberto Chateaubriand, ora no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. É um Autorretrato do artista quando jovem. Ali o vemos, um adolescente de grandes olhos azuis, olhando para o espelho que o retrata, mas olhando também, e com confiança, para o futuro. Esse retrato é mais do que uma obra de arte: é uma lição de vida.

 

Carlos Scliar sempre quis ser artista plástico. As pessoas de imediato reconheciam a autenticidade e a força desse propósito, e mais que todos, Henrique Scliar, o pai dele. Nem todos os pais se entusiasmam quando o filho anuncia que deseja seguir uma carreira tão insegura quanto é a de artista neste país (ou em qualquer outro). De modo que o velho Henrique tentou convencer Carlos a mudar de ideia. Mas sem muita convicção: também ele estava longe de ser uma figura comum. Artista ele mesmo – fazia teatro amador – e anarquista convicto (várias vezes teve de fugir do país), sabia que o filho estava apenas se revelando um digno herdeiro do pai. De modo que tratou de ajudá-lo como podia. Logo as paredes de sua casa, na Avenida Oswaldo Aranha, foram se enchendo de pinturas do Carlos. E ali eram admiradas por visitantes ilustres, como Jorge Amado, que logo se tornou amigo do pintor.

 

E aí o Brasil entrou em Guerra com os países do Eixo. Carlos Scliar, pracinha, foi designado para servir com a Força Expedicionária Brasileira na Itália. Era a frente de batalha, e havia perigo, mas havia uma compensação: lá Carlos estava em contato direto com as obras de grandes mestres da pintura italiana. Junto à tropa estava um correspondente de guerra também famoso: Rubem Braga. E Rubem Braga protagonizou um incidente (que depois relatou numa crônica) particularmente tocante.

 

Enquanto Carlos estava na Itália, a mãe dele adoeceu e morreu. Em meio a seu sofrimento, Henrique Scliar viu-se diante de um problema: como dar a notícia ao filho? Decidiu recorrer a Rubem Braga. Mandou-lhe uma carta, pedindo que fosse o portador da triste notícia.

 

Rubem Braga foi procurar o jovem Carlos. E encontrou-o no alojamento, excitadíssimo: pela primeira vez, desde sua chegada ao front, recebera uma licença de vários dias. E ia aproveitá-la visitando os tesouros artísticos da lendária Florença, ali perto.

 

Não se pode estragar a primeira visita de um jovem pintor a Florença – disse ele.

 

Carlos Scliar visitou Florença. E, depois da guerra, foi morar em Paris, como o faziam todos os artistas plásticos. Mais uma vez, teve apoio de seu pai. Voltou ao Brasil e aqui começou sua carreira, agora em caráter profissional. Nunca duvidou do que queria fazer. Nunca deixou de trabalhar: em pintura, em gravura, em arte gráfica. Nunca deixou de aprender e, com generosidade que ficou lendária neste país, nunca deixou de ensinar, nunca deixou de ajudar. No que, claro, seguia o exemplo de seu pai.

 

O resto é história, uma história sintetizada nas obras que agora estão em exibição. Aos 80 anos, Carlos Scliar pode olhar para trás e dizer a si próprio que chegou lá, que atingiu seus objetivos.

 

Penso no Carlos Scliar quando vejo pais atrapalhados com os problemas criados pelos filhos na escolha de uma profissão. Claro, nem todos que querem ser pintores (ou músicos, ou atores, ou poetas) serão pintores, ou músicos, ou atores, ou poetas. Mas pelo menos um crédito de confiança eles merecem, essas moças, esses rapazes. Têm o direito de, ao menos uma vez na vida, olharem-se ao espelho e verem ali o retrato do artista quando jovem.”

 

Moacyr Scliar

Revista ZH Donna – 1° de Outubro de 2000  – Zero Hora

Porto Alegre (RS)