Moacir Werneck de Castro

UMA LOUVAÇÃO À VIDA

 

“Conheci Carlos Scliar em circunstâncias que depois nos fariam rir, mas que na ocasião eram assustadoras. Em outubro de 1939, sob o Estado Novo, fomos ambos presos, junto com Rubem Braga, no apartamento deste, em Porto Alegre. Rubem e eu acabamos despachados de lá num navio da Guarda Costeira.

Scliar, então com 19 anos, tinha cara de muito menos, e a polícia o soltou logo, como um guri inofensivo.

Somos amigos desde então – há mais de sessenta anos, um recorde invejável.

 

Rubem Braga o descreveu, nesse tempo, como “um rapazola louro, tímido e orgulhoso, atacado da febre da pintura”. Daí a pouco, o rapazola foi para São Paulo. Ali, Rubem patrocinou a sua primeira exposição. O estreante recebeu elogios, entre os quais de Oswald de Andrade, que vaticinava: “Esse menino é uma vocação verdadeira”. Pouco depois, Scliar e Rubem participariam juntos da Força Expedicionária Brasileira, ele como “pracinha”, desenhando. Era uma febre incurável.

 

Tenho acompanhado de perto a sua trajetória, e nossa amizade só fez crescer em meio às vicissitudes do século. Sou testemunha de suas atribulações num período em que artistas com uma posição sensível às grandes causas de justiça social e liberdade sofrerem o impacto de uma distorção terrivelmente sectária desses princípios por parte do comando partidário. Com inalterável dignidade, ele soube ser fiel ao seu ideal. Do mesmo modo, manteve-se imune à atração dos modismos ditados pelos centros do poder político e econômico.

 

Nosso comum amigo Rubem Braga diria mais tarde: “Scliar desistiu de consertar o mundo com sua arte, para se dedicar a um exercício de beleza que é uma louvação à vida”. O juízo estético é exato, mas desconfio que lá no íntimo persiste nesse artista notável o velho desejo de consertar o mundo, já que a louvação da vida tem sido uma constante em sua obra.”

 

Moacir Werneck de Castro (2000)