A MÃO APURADA DE CARLOS SCLIAR
Creio que foi Sartre quem disse que a morte completa a obra do artista, no sentido de que lhe põe o ponto final e com isso nos permite vê-la inteira: nada lhe será acrescentado e nada lhe falta, mesmo porque, se algo lhe falta essa falta é parte dela. Penso nisto, agora, no momento em que a notícia da morte de Carlos Scliar me leva a debruçar sobre o trabalho que ele realizou durante 60 anos de atividade artística.
De início, espanto-me com a sua precocidade: aos 18 anos já ajuda a fundar a Associação de Artistas Plásticos de Porto Alegre, aos 20 muda-se para São Paulo e participa do último salão da Família Artística Paulista; aos 23 está na frente de batalha, na Itália, como integrante da Força Expedicionária Brasileira. E esse começo de vida já nos revela o Scliar do futuro: artista imbuído da importância social da arte e ao mesmo tempo o ativista, o cidadão convencido de que devia ajudar a mudar o mundo.
Agora, concluídas a vida e a obra, tento abrangê-las num único relance do olhar e percebo que Scliar cumpriu seu papel de cidadão e artista de maneira exemplar. E me vêm à memória o seu sorriso afetuoso, suas atitudes solidárias de mistura com algumas das obras mais belas produzidas pela arte brasileira nestas últimas décadas e que a ele devemos.
Pode ser que haja artistas nascidos prontos, já mestres em sua arte. A maioria deles, porém, tem que aprender o ofício e descobrir o caminho, como foi o caso de Carlos Scliar. O talento esteve evidente desde os seus primeiros esboços mas a descoberta do rumo que daria a esse talento, das técnicas e da linguagem que melhor o expressariam, isso demorou. Na Europa conheceu o expressionismo alemão, que atendia a sua necessidade de denunciar as misérias humanas e as injustiças sociais, mas foram os primitivos flamengos, franceses e italianos que lhe ensinaram a lição fundamental – a construção rigorosa, despojada e elegante que iria constituir a base estilística de sua obra de pintor, gravador e desenhista. Não foi também por acaso que, no cubismo de Picasso e Braque, encontrou o vocabulário plástico, moderno, das colagens – o papier collé – que lhe permitiria criar o melhor de sua obra. É que o cubismo, por seu caráter racional e construtivo correspondia ao temperamento estético de Scliar, que lhe acrescentará delicadeza e lirismo.
No começo de sua carreira, Scliar ficou conhecido como um artista engajado, que fazia da arte um instrumento de conscientização política e denúncia social. Este é o conteúdo do álbum de gravuras – A estância – que publicou em 1956. Mas não é revelador o fato de que a maioria dessas gravuras não representa gente, mas objetos? Elas são, de certo modo, naturezas mortas, como suas colagens futuras. Estou querendo evidenciar, com isto, a verdadeira natureza do pintor Carlos Scliar: ele era, sobretudo, um construtor do espaço abstrato, preocupado principalmente com as possibilidades de criar composições que nos surpreendem pelo equilíbrio assimétrico, pela harmonia inesperada de elementos dissonantes.
A sua última exposição no Museu Nacional de Belas Artes mostrou-nos algumas colagens, obras recentes, que constituem pontos culminantes de seu talento e de sua mestria.
(Ferreira Gullar, crônica publicada no Jornal do Brasil, RJ, em30/04/2001